terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Convite a uma suave contradança - "Outras Palavras" - Andressa Barichello


Há algumas semanas durante a revisão de textos escritos há mais de um ano, me deparei com um texto de 2013. De lá pra cá algumas coisas mudaram. Contudo, a inquietação a respeito de como nossos corpos (especialmente os corpos de mulheres) são reiteradamente invadidos continuou marcada - convivemos com agressões que podem ser devastadoras em sua sutileza, a qual tantas vezes nos impede de identificar e traduzir episódios abusivos. Hoje acrescentaria a esse texto um único complemento: A invasão ao corpo do outro, para além de uma leitura feminista de práticas que desvelam o lugar a partir do qual a mulher é olhada em sociedade, parece ser também uma consequência extremada da possibilidade que temos de acessar os outros simbolicamente a todo momento. Talvez essa tamanha liberdade que temos de demandar “online” propiciada pela tecnologia, pela internet e pelos “dispositivos móveis” em alguma medida caminhe em paralelo com a restrição dos espaços físicos – é urgente lembrarmos que “dar um toque”  no sentido figurado nos é facultado, mas um toque físico demanda consentimento. Por mais aproximação empática, compreensiva, respeitosa – para estar junto e próximo a alguém é preciso bem mais do que um corpo de carne e osso!

CONVITE A UMA SUAVE CONTRADANÇA
É frequente nas redes sociais a divulgação de textos que alertam para práticas machistas. As nuances abordadas são muitas e, particularmente, acho que vale a pena ficarmos atentas a certas atitudes que, de tão reiteradas, muitas vezes passam despercebidas. Atitudes que nos fazem sentir desrespeitadas e constrangidas, para dizer o mínimo. 
Algo que tem chamado a minha atenção é a recorrente falta de credibilidade dada ao "não" quando este é enunciado por uma boca feminina. Muitos homens realmente acham que "não" é "sim” porque, oras: nós mulheres sempre estamos "nos fazendo" para não parecermos "fáceis demais"!
A mediação das relações pela palavra tem falhado e a mulher, especialmente a solteira, é muitas vezes vista como sempre disponível e suas recusas "no fundo não passam de charme" ou, quem sabe, de "falso moralismo". Penso que o velho exemplo do "vestida assim pediu para ser estuprada" é o extremo de uma prática cruel que pode ter contornos bem mais sutis no dia a dia. 


- Aceitamos um convite para dançar e o sujeito tenta grudar no nosso pescoço. Se reagimos: "Você aceitou quando eu te puxei para pista!" 

- Recusamos que o sujeito nos pague uma bebida pois, "não obrigada, eu não bebo" e segundos depois somos surpreendidas com um copo de cerveja tamanho EXG: "Não achei que você estivesse falando sério quando disse que não bebia".

- Somos puxadas pelo braço por alguma criatura cuja presença nem havíamos notado no recinto: "Deixa disso, eu vi que você estava me olhando". 

- Aceitamos sair para um café e na despedida o moço agarra nossa cintura e tenta nos lascar um beijo na boca: "Quando você aceitou sair comigo eu achei que". 

- Aceitamos uma carona para casa e quando nos damos conta há um desfile de motéis à nossa escolha: "Quando você aceitou entrar no meu carro eu achei que".

Enfim, tenho certeza que se puxarmos pela memória lembraremos de muitas ocasiões nas quais sentimos que a nossa opinião e vontade não foi efetivamente considerada porque foi, antes, pressuposta.

"Vamos assistir um filminho lá em casa?" em breve constará do dicionário informal como sinônimo de convite para sexo casual. Está institucionalizado: mulheres acima dos 18 anos não tem o direito de assistir um filminho na casa de homem nenhum (salvo o próprio irmão ou algum amigo gay) - a não ser que seja um filme do gênero filminho mesmo. Quem nunca ouviu de uma amiga: "Se você não quer sexo, é melhor nem ir"?

Jantar só se for no restaurante e se você morar sozinha, de preferência nem pense em dividir um táxi na sequência: Há homens que resolvem saltar no seu endereço - "Pensei que poderíamos ficar mais um pouquinho juntos". É cada vez mais raro encontrar indivíduos capazes de dizer abertamente o que pensam ou desejam. É muito mais comum que um homem que pretenda se relacionar (ainda que afetivamente) com uma mulher tente uma aproximação física ao invés de abordá-la com palavras ou gestos que não incluam o corpo do outro.

É óbvio que no jogo das relações nem tudo precisa ser verbalizado. É óbvio que muitas vezes uma dança, um café, um jantar e um filminho podem render. É óbvio que muitas vezes gostamos que paguem a nossa bebida. É óbvio que podemos passar a noite olhando para um homem interessante e torcer para que ele se aproxime. É óbvio que podemos estar sexualmente disponíveis porque temos o direito de. Podemos beijar de primeira e até dar de primeira. Mas que fique claro: podemos É uma questão de escolha, de faculdade, de opção. E exatamente por isso podemos desejar nada além de uma dança, de uma conversa, de um café, de um jantar, de um filme, de uma carona, de uma companhia, de um amigo. Mas: será que realmente ainda temos essa opção?

Um número expressivo de homens tem absoluta falta de sensibilidade para perceber quando houve ou não "uma deixa" para outro tipo de aproximação. Quantas vezes não fazemos qualquer movimento e inclusive sinalizamos a nossa ausência de interesse mas ainda assim temos que nos haver com abordagens invasivas? Acredito que muitas vezes a total "inconveniência" de certos tipos insistentes que cruzam nosso caminho é mais do que isso. Quem nunca se sentiu coagida? Até que ponto a abordagem incisiva de alguém com quem não queremos qualquer contato físico é um mero enfado? Até que ponto um cara sem noção é apenas um mala sem noção? Qual o limite? Tenho pensado a respeito e a linha que separa a chatice da agressão (ainda que simbólica), parece-me, é bastante tênue. 

Homens, tenham bom senso e fiquem tranquilos: Mulher, quando está a fim, não deixa por menos. Se a gente quiser, uma hora ou outra vai rolar. Se a gente quiser.

Andressa Barichello, paulistana de nascença, curitibana pelo acaso.
Escreve crônicas, contos e poemas. Escreve pra tentar fazer sentido, para si e para os outros. É co-idealizadora do projeto Fotoverbe-se! e.... e.... e...

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