Sempre me
incomodou como brasileira, cidadã e, principalmente como advogada, como o
descaso com o cumprimento de regras por parte de parte da população leva a uma
hiperatividade legislativa apenas para tornar mais severas punições para
desvios de conduta que já não conseguíamos punir. Ou seja, as leis surgem para “corrigir”
a falta de fiscalização de uma lei anterior que se fosse corretamente aplicada
de forma isonômica já proporcionaria um convívio harmonioso em sociedade.
É fato que paira
sobre nós a ilusão de que a severidade da pena de alguma forma inibe a conduta
criminosa coisa que eu particularmente sempre questionei. Ninguém deixa de
beber e dirigir porque a multa está mais alta mas muitos o fazem quando as blitz
começam realmente a acontecer. Maior prova disso é o fato de termos cidades em
que a Lei Seca “pegou” e outras em que tudo corre como sempre correu (vide Rio
versus Curitiba). A certeza da punição é certamente mais eficaz na prevenção do
delito do que a severidade de uma pena não fiscalizada, ainda que, na minha
opinião não seja também a punição a razão pela qual as pessoas deixem de
cometer crimes e os Estados Unidos são a grande prova disso afinal de contas um
dos países com penas mais severos do mundo é também o líder absoluto em população
carcerária. Se apenas a severidade e certeza das penas resolvessem porque
cargas d'águas esses cidadãos insistem na criminalidade?!?!
Não deve causar espanto portanto que, à primeira vista, quando ouvia
falar de criminalizar a homofobia e de tornar hediondo o homicídio pela
condição de gênero minha primeira reação era de incomodo. Me pareceu sempre
muito óbvio que esse tipo de crime já estaria qualificado (sendo portanto
hediondos) em pelo menos duas (quando não em todas) das 5 qualificadoras
possíveis[1].
Afinal o que é mais torpe e fútil do que atentar contra a vida de alguém pela
sua condição de gênero ou orientação sexual? Como defender que um crime que não
tenha fundamento outro que a irracionalidade e o machismo possa não se
enquadrar em uma dessas qualificadoras?
Aparentemente
não está claro para a maioria dos operadores do direito, inclusos aí os
digníssimos membros da magistratura, que quando um homem mata uma mulher por
ciúme ele está cometendo um homicídio qualificado. Não! A maioria acha ainda,
em pleno século XXI, que este tipo de crime se enquadra na atenuante “sob a
influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima[2]”
já que, né... #quemnunca #sqn
Comecei a me dar conta ao estudar em mais profundidade o tema e os
números da violência contra a mulher no Brasil e no mundo, que precisamos sim
dizer, e por que não gritar, que não se pode sair por aí espancando ou matando
a namorada, mulher, mãe, filha, etc., simplesmente pelo fato de ela não ter
atendido o padrão de comportamento esperado pelo sistema patriarcal.
Se somos o país onde precisamos legislar sobre tudo e dizer com todas as
letras que maltratar animais é crime, que fazer o consumidor de otário também,
precisamos então escancarar ao policial que atende a ocorrência de violência
doméstica, ao promotor, ao juiz e à sociedade como um todo que tem alguma coisa
muito errada quando 68,8% das mortes de mulheres acontecem no âmbito doméstico,
nas relações privadas e mais íntimas, com mais intensidade e barbárie do que
nos crimes patrimoniais (assalto, latrocínio, sequestro, etc.). Tem algo de
muito torto e cruel em uma sociedade onde a maioria de assassinatos contra
mulheres é cometida por pessoas com quem ela mantém ou mantinha algum tipo de
relação de afeto, como cônjuges e/ou namorados ou os respectivos ex.
Se é preciso uma nova lei para chamar atenção ao fato de que o Brasil ocupa a 7ª posição de maior número de assassinatos de mulheres no mundo, num ranking com 84 países que venha mais uma lei... que venham todas quantas forem necessárias para compreendermos finalmente que tem algo muito errado com uma sociedade que trata suas mulheres como ou pior do que animais em termos de proteção legal!
Honestamente não acredito que uma lei resolva um
problema tão profundo e estrutural, mas hoje vejo com muita clareza a
importância da lei do feminicídio para ao menos evidenciar a existência desse
problema! Ao começarmos a classificar os homicídios contra mulheres por razões
de gênero dando “nome aos bois” poderemos quem sabe ter políticas públicas mais
eficientes a esse respeito e principalmente colocar o elefante branco na sala
de uma sociedade que ainda acredita que “o machismo já é coisa do passado e que
a moda agora é namorar pelado”.
“Ahhhhh mas eozomi???? Eles morrem muito mais do que mulheres de morte violenta. E ainda por cima são obrigados a servir o exercito...zzzzzzzzzzzzzz”
Parece tão difícil para alguns entenderem que não
se trata de negligenciar o direito dozomi,
mas de apontar uma condição de violência distinta. As causas que levam ao
assassinato de homens (em sua maioria jovens, negros e pobres) são igualmente
graves e devem ser endereçadas e corrigidas, mas acontece que as mulheres são
assassinadas em circunstâncias em que os homens não costumam ser e é necessário
expor tais circunstâncias. Homens não são esfaqueados porque supostamente
estavam “dando mole para alguém”ou porque a mulher não aceita a separação.
Ao menos não em regra (assim como também tem casos em que mulheres são mortas
em assaltos, etc.). O que mais mata essas mulheres é o machismo!
O que está por trás de todos esses crimes é um
sistema que objetifica e diminui a mulher em todas as esferas da vida pública
banalizando a violência contra ela que é considerada pelo inconsciente coletivo
como um ser de segunda categoria, um amontoado de carne que existe para servir
e dar prazer ao homem. Seja no mercado de trabalho, na autonomia da vida sexual
ou em qualquer papel que uma mulher exerça na sociedade, o mesmo sistema que
caga regras de que a mulher tem que se dar ao respeito, que compara mulheres a
fechaduras e homens a chaves mestras (sim! Isso ainda existe!), ou que
determina que a culpa de um estupro é da roupa e não da bestialidade do
estuprador é o que faz com que um crime tão grave quanto o homicídio, quando
cometido contra uma mulher por ciúme seja atenuado e não agravado!
Uma sociedade que tem sites e páginas (que não cito
por razões de não dar audiência) que fazem apologia ao estupro, à discriminação
de gênero e à violência seguidas por centenas de milhares (ás vezes milhões) de
pessoas (inclusive mulheres) e onde a cada uma hora e meia ocorre um feminicidio realmente precisa que se diga em lei que não se podem
matar mulheres pois isso é torpe, é fútil e sinal de atraso social. Ao julgar a
constitucionalidade do aborto de anencéfalos, o ex Ministro do STF Carlos Ayres
Britto citou com maestria o sociólogo francês (sim! sociólogo foda ou é francês
ou alemão!) Charles Fourier: “O grau de civilização de uma sociedade se medepelo grau de liberdade da mulher”.
Precisamos da lei
do feminicídio mas mais do que tudo precisamos abalar as estruturas do machismo!
Precisamos no nosso dia a dia garantir com pequenas e grandes ações que os
números da violência contra a mulher parem de nos envergonhar como espécie!
Foi pensando em
tudo isso e na dificuldade dos operadores do direito e da sociedade em geral
aceitarem essa nova lei (assim como foi na época da Lei Maria da Penha) que
levamos à OAB do Paraná o tema para debate que foi prontamente acolhido pela
Presidência da entidade que nos deu carta branca para organizar pela CEVIGE –
Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero o evento que abordará aspectos
sociais, sociológicos e jurídicos do tema. Teremos no evento que ocorre no próximo dia 9 de junho na OAB/PR importantes
nomes relacionados ao tema e algumas heroínas pessoais da causa como a Dra.
Silvia Pimentel, Luci Belão e outras importantes estudiosas do tema.
Me sinto muito
orgulhosa por fazer parte dessa categoria de profissionais que tem uma
instituição como a OAB que não foge à sua função social e democrática quando se
trata de debater temas relevantes à sociedade como um todo.
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